segunda-feira, março 28, 2011

O tempo está na cara

Passos ecoantes se aproximam da porta, acompanhados pelo som da maçaneta, seguidos instantâneamente pelo ranger das dobradiças. Um filete de luz costura uma silhueta sombria e distorcida na velha fórmica. Click. Acende a luz.

Um homem, envolto em seus monstros mentais atravessa lentamente o banheiro. Apoia-se com as mãos na pia. Abaixa a cabeça, suspira. Sente os ombros tensos a encolherem contra o pescoço. Num esforço imenso, joga o corpo pra trás e levanta a cabeça, por uma fração de segundo consegue ouvir o ranger do pescoço.

Fita-se friamente no espelho, com aquele olhar de mosca-morta, então, volta para si e vê seu rosto, ao melhor estilo Tony Ramos. Quanta barba...

Sua última lembrança era de ter feito a barba.

Abriu a gaveta do armário, pegou a tesourinha no pequeno estojo azul e transparente. Penteou-se e começou a cortar a barba novamente.

Não se lembrava de nada além de ter feito a barba no dia anterior.

Tic-tic-tic... E novamente o espelho tornou-se uma janela imaginária, quando de repente:
- Ai! Puta merda!

Os pedaços desbastados de barba ganhavam uma nova tonalidade, vermelha, cortara a pontinha do queixo e um sorriso invade o rosto junto do pensamento irônico:

"Por isso que usávamos tesoura sem ponta na escola primária..."

Molha calmamente as mãos, enche-as de água e joga na cara, acreditando que se durasse um pouco mais poderia se afogar. Na pia, aquela velha brocha de cabo amarelado é mergulhada na mistura para fazer a espuma.

Chic chic chic... Pronto, parece o Papai Noel.

Pega a navalha lentamente, abre, fita seus olhos no reflexo da lâmina, muito afiada, mas também não lembra-se de quando a afiou.

Aproxima do pescoço...

Respira fundo...

Encosta a lâmina na pele, sente o micro-choque da lâmina gelada encostando na pele quente... Começa a fazer o movimento de cima para baixo, cortando os pelos com o fio acariciando sua face e seu pescoço...

Faz repetidamente os movimentos quando novamente um sorriso lhe invade a alma:
"Não vou barbear as duas metades da face..."

Novamente jogou água na cara, pegou a toalha, secou-se e gargalhou alto e incansavelmente...

Saiu na rua, tirou fotos, colou na agenda e marcou a data, pois não saberia quando iria se barbear amanhã novamente.

Caiu na cama e dormiu...

Um comentário:

Maíra K. disse...

Cair na cama e dormir. Tem coisa melhor que isso depois de um dia cheio de novidades? NOT!